segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dois contos

Republico abaixo dois dos contos que participaram da Bolsa Funarte de Criação Literária, mas que infelizmente ficaram no banco de reservas. Bola pa frente!

A Entrega Perfeita
ou
Entraves Brasileiros dos Correios e Telégrafos (ECT)


O número no painel eletrônico era 428. Ou seria 482? Talvez tenha sido 824... Na verdade, não importa. Como a data da morte da mãe do estranho e fleumático Mersault[1]: “Foi ontem. Ou quem sabe anteontem...”
O que há de representativo no ocorrido, é que muitas vezes o esforço em se atingir um resultado satisfatório, eficiente, periga desaguar na total inoperância finalística.
Explico: hoje fui a uma agência dos Correios postar um pacote cujo conteúdo era um brinquedo, uma espécie de par de luvas do Super-Homem que emitem ruídos de pancada quando pressionadas sobre dada superfície, como a barriga do meu cunhado e padrasto do Arthur, este último, meu afilhado e sobrinho, cujo quinto aniversário foi comemorado há quinze dias, no Rio de Janeiro.

Bem, assim que o atendente apertou o dispositivo que lançou no painel o número da minha senha, dirigi-me ao guichê e indaguei se aquele pacote embrulhado com papel de fundo azul permeado de motivos juvenis (se não me engano, continha figuras de skateboarders manobrando seus brinquedos rolantes), poderia ser despachado no estado em que se encontrava, sem que fosse necessário acondicioná-lo numa outra caixa, ou envolvê-lo no tradicional papel pardo que normalmente embala as encomendas postais.
O rapaz de cabelos compridos cacheados e aspecto alternativo, no mais puro estilo “make love not war”, foi veemente ao responder que a caixa muito provavelmente chegaria em estado deplorável, amassada e/ou rasgada. Em suma, corria-se o risco de o brinquedo restar inutilizado quando atingisse seu destino, a Praia de Botafogo. Trocando em miúdos: o Arthur perderia a oportunidade de divertir-se desferindo sonoros cruzados de direita no baço do meu cunhado.
Respondi que o brinquedo parecia ser resistente, de pouco volume e bastante compacto.
Então, o atendente me entregou uma folha de papel cortada ao meio para que eu escrevesse os dados do destinatário e do remetente, para que em seguida ele colasse em cada lado respectivo do pacote com fita adesiva, concluindo o procedimento.
Agradeci e dei dois passos à esquerda para que o funcionário postal chamasse o próximo cliente. Curiosamente, este chegou também com um brinquedo para enviar, desta vez uma bola. O atendente, sempre muito cioso e no intuito de resguardar a qualidade do serviço postal (ou até mesmo pra não ser incomodado na sua atitude zen com futuras reclamações), aconselhou-o a embalar a bola numa caixa retangular, para que os encarregados do transbordo não percebessem que se tratava de uma bola, e não sentissem a incontrolável tentação de chutá-la, cabeceá-la e/ou matá-la no peito, lançando no ângulo do contêiner que a transportaria. Quem sabe ainda correriam “pra galera”, dando saltos mortais, ou imitando os geniais passos de Michael Jackson, ou ainda, chupando o polegar em homenagem ao filho recém-nascido.
Mas esse cliente posterior estava mais despreocupado. Decidiu ir comprar o papel pardo na livraria do prédio ao lado para embrulhar a bola, sem se importar em preservar dos olhos alheios seu aspecto esférico, afirmando não estar “nem aí”, e que, quem quisesse, que ficasse inteiramente à vontade para brincar de Ronaldinho. Desde que o brinquedo chegasse intacto no destino.
O alerta do cabeludo (de que a bola seria chutada), logo depois de quase me fazer desistir de enviar o presente do Arthur, provocou risos em mim, no próprio “hippongo” e no sujeito que não daria bola para eventuais chutes na sua bola.
No meu íntimo, além de achar graça de tudo aquilo, passei a refletir sobre o paradoxo que meus olhos míopes testemunhavam: a cega determinação em oportunizar serviços de qualidade, por pouco não provocou em dois clientes consecutivos a vontade de desistirem de contratar um serviço tão corriqueiro e banal quanto a postagem de uma encomenda, face aos obstáculos que as corporações gigantescas promovem em nome do tal controle de qualidade e do reconhecimento do mercado, esse ente despersonalizado que tanto aflige os corações e mentes de uma sociedade de consumo fragmentada e fragilizada.

A entrega perfeita parecia, aos olhos de todos, fantasmagórica, com sua perfeição espectral. Exceto ao nosso prosaico protagonista de balcão, que não acredita em fantasmas.


Aparências e Desencontros


Do solo, José observava extasiado a altura daquela coisa. Uma complexa obra da engenharia mecânica, eletrônica e sabe-se lá, até mesmo aeronáutica, cuja única serventia era inversamente proporcional ao acúmulo tecnológico nela investido: divertir, singelamente.

A Big Tower perfilava uma altitude de cem metros e o impacto nos hormônios se dava pela queda livre. José a admirava. Mas a temia. Era a terceira vez que freqüentava aquele parque, e sempre que ali estivera, prometera a si mesmo que, da próxima vez, ele finalmente tomaria coragem.

Novamente, “amarelou”. Na verdade, quem decidiu ir foi Joana. Estavam casados há dois anos e meio, e resolveram dar um basta no marasmo se deslocando àquele parque. Joana respirou fundo, aguardou ansiosamente na fila sua vez, e sentou na cabine. Ao seu lado, outra mulher percebeu sua angústia e sugeriu que se dessem as mãos. Joana hesitou, pois em tempos de gripe suína, não se sentia à vontade em estender as mãos a uma estranha, principalmente durante um inverno com temperaturas médias de 10º C. Mas resolveu segurar a mão direita da moça, face ao efeito calmante que isto lhe causaria.

Foram dois minutos até o topo da torre. Dois minutos que para Joana pareceram uma eternidade. Quanto mais alto, mais intensa se fazia a secreção da adrenalina em seus neurônios e sistema circulatório. Sentiu a parada abrupta do compartimento que a transportava, e a ansiedade atingiu o pico, nos segundos que se seguiram entre a parada e o início da queda.
E, vupt, Joana despencou, aos berros. Lágrimas lhe escorriam a face, parte em razão da incrível emoção que sentia, parte devido ao vento gelado que veloz e furiosamente lhe chicoteava. Sua vizinha de assento, como que petrificada pela experiência radical, parecia ter se esquecido de afrouxar o punho firme que ainda segurava a mão de Joana, assim permanecendo por quase trinta segundos após o fim da aventura. Ao sair do transe, fitou Joana com um sorriso meio constrangido, finalmente soltando-lhe a mão.
Saíram comentando as incríveis emoções que aquela geringonça lhes proporcionara, realimentando a excitação que começava a arrefecer.

No seu canto, José aguardava. O parque estava especialmente cheio naquele dia, e a Big Tower era um dos brinquedos mais procurados, daí a quantidade de pessoas em torno dela, o que tornava fácil perder-se de seus acompanhantes. Passaram-se dez, quinze minutos desde a descida. E nada de Joana. Foi quando Antônio apareceu. Entabulou uma conversação com José sobre a torre radical e a excitação que ela causava.
- Já fui três vezes - disse Antônio.
Surpreso e envergonhado com sua covardia, José respondeu que já havia ido duas vezes e se preparava para entrar na fila novamente.
- Não vejo a hora de voltar – completou.
Continuaram conversando sobre as atrações do parque, um afirmando que o que mais apreciava era a montanha russa, o outro, a roda gigante. Conduziram o assunto para dados pessoais: de onde vinham, o que faziam, para que time torciam. E o tempo foi passando. Meia hora depois da descida de Joana, José lembrou-se dela e tornou a estranhar, agora, mais do que nunca, sua ausência.
Resolveu despedir-se de Antônio e sair em busca de sua mulher. Notificou o interlocutor do que o intrigava, apertou-lhe a mão e afastou-se.
Seguiu direto ao corredor de saída da Big Tower. Ficou ali por uns instantes, girando sobre seu próprio eixo, a mão esquerda em perpendicular rente à testa, com vistas a tapar o sol poente que lhe ofuscava a visão, enquanto varria o horizonte em todos os ângulos, à procura daquele rosto ovalado, circundado pelos cabelos castanhos cacheados que tanto lhe aprazia fitar.
E como lhe dava prazer a imagem do rosto de Joana! Lembrou-se daquela vez em que foram àquele outro parque, situado naquela outra cidade, quando, de cima do Barco Viking, o anel de noivado que lhe presenteara escorregou de seu anelar direito, caindo numa vala lateral ao brinquedo. Este incidente representou nada mais do que um mísero contratempo na lua-de-mel perene que viviam então. Mesmo assim, Joana ficou bastante aborrecida com a perda daquele objeto de tamanha importância sentimental e material.
José procurou incansavelmente. Duas horas transcorreram. Ligou repetidas vezes para o celular de Joana: desligado. O parque estava para fechar. Estava inclinado a registrar queixa do desaparecimento.
Foi quando recebeu uma mensagem de texto. Era de Joana. “Mil perdões. Outra hora conversamos. Estou bem. Adeus”.
Desconsolado, José entrou no carro e partiu do parque. Agora, além de covarde, passara a ser um marido traído. Assim, de súbito.
O parque encerrou suas atividades. Antônio ficara até o último minuto. No caminho de volta, recordou sua conversa com José. Antônio também mentira. Era outro medroso querendo contar vantagem, igualmente temia a torre, tampouco tinha tido coragem de se aventurar nela.
- “Que sujeito corajoso, esse José” – pensou Antônio. - “Deve ter uma mulher maravilhosa a seus pés”.

[1] Personagem do romance O Estrangeiro, de Albert Camus

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